Maria Carmen Silveira Barbosa**
O cotidiano das escolas de Educação Infantil evidencia que as propostas
curriculares, na especificidade da creche, se concretizam através de três modalidades.
Essas modalidades apontam para pedagogias adultocêntricas e “escolarizadas”
nas quais os bebês e as crianças pequenas não são reconhecidos
como seres linguageiros, ativos e interativos em suas primeiras aprendizagens
de convivência no e com o mundo. O poder delas de aprender a apropriar-se de
significados através da inserção gradual em um conjunto de relações e processos
constituem um sistema de sentido. A função docente, como co-produtora
de currículo, efetiva-se na construção de um espaço educacional que favoreça,
através da interlocução com as crianças e as famílias, experiências nas diferentes
linguagens e nas práticas sociais e culturais de cada comunidade. Os bebês,
em seu humano poder de interagir, interrogam esses modelos curriculares
ao afirmarem, nas suas ações cotidianas, a interseção do lúdico com o cognitivo
nas diferentes linguagens: a conciliação entre imaginação e raciocínio, entre
corpo e pensamento, movimento e mundo, em seus processos corporais de
aprender a operar linguagens e narrativas.
O que significa ser professora de bebês? Como se caracteriza o “ofí-
cio de aluno” em uma turma de berçário? O que se espera de uma ação pedagó-
gica na creche? Como propor um currículo para crianças bem pequenas? Quais
são as funções específicas de uma escola que atende bebês e crianças bem
pequenas? Quais as estratégias consideradas adequadas ao trabalho pedagó-
gico com crianças pequenas? Quais possibilidades de conhecimento podem
ser desencadeadas e promovidas na creche?
Enfrentar as interrogações acima é constatar que as especificidades
das características da faixa etária das crianças que freqüentam a creche exigem
conceber um outro tipo de estabelecimento educacional e, conseqüentemente,
a revisão de conceitos naturalizados em nossa sociedade sobre escola
e infância, conhecimento e currículo.
As crianças pequenas têm como característica trazer novidade ao
mundo. Hannah Arendt (2004, p. 17) destaca que a condição humana da natalidade,
enquanto “o novo começo inerente a cada nascimento”, pode “fazer-se
sentir no mundo somente porque o recém-chegado possui a capacidade de
iniciar algo novo, isto é, de agir”. Em sua perspectiva, cada nascimento traz
consigo a irrupção da imprevisibilidade e da irreversibilidade. Cada criança que
nasce é um desafio, uma interrupção, uma interrogação ao trazer consigo outras
possibilidades de agir. Inclusive ser diferente de como a conhecemos ou a
concebemos a partir de nossas teorias. Nesse sentido, elas trazem questionamentos
também à instituição educacional e ao currículo.
As múltiplas linguagens dos bebês
Os seres humanos, ao nascerem, trazem como condição de sobrevivência
a necessidade e o desejo de se relacionar e de se comunicar. Nascer,
para Bernard Charlot (2000, p. 53), “é penetrar nessa condição humana. Entrar
em uma história, a história singular de um sujeito inscrita na história maior da
espécie humana. Entrar em um conjunto de relações e interações com outros”.
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Disponível em:
Os bebês interrogam o currículo: as múltiplas linguagens na creche
Por isso, para o autor, os bebês nascem submetidos à obrigação de aprenderem,
de penetrarem “em um conjunto de relações e processos que constituem
um sistema de sentido, (...) [que se] elabora no próprio movimento através do
qual eu me construo e sou construído pelos outros” (CHARLOT, 2000, p. 53).
Por isso, os bebês nascem “falando”, brincando e “conversando” com qualquer
um através de múltiplas linguagens: do olhar, do gesto, do toque.
Nessa perspectiva, as linguagens são apreendidas pelas crianças muito
cedo nas interações que estabelecem com outras crianças e adultos. Além
disso, as pessoas importantes para elas constantemente as incluem – olhando
em sua direção, esperando respostas, fazendo gestos e olhares específicos.
Considerando que a criança se constitui apropriando-se de uma humanidade
que lhe é “exterior”, é necessário a mediação do outro. Aqui, “a educação não é
socialização de um ser que não fosse já social: o mundo, e com ele a sociedade,
já está sempre presente” (CHARLOT, 2000, p. 54).
Os bebês sabem muitas coisas que nós culturalmente não conseguimos
ainda ver e compreender e, portanto, reconhecer como um saber. As suas
formas de interpretar, significar e comunicar emergem do corpo e acontecem
através dos gestos, dos olhares, dos sorrisos, dos choros, enquanto movimentos
expressivos e comunicativos anteriores à linguagem verbal e que
constituem, simultâneos à criação do campo da confiança, os primeiros canais
de interação com o mundo e os outros, permanecendo em nós – em nosso
corpo – e no modo como estabelecemos nossas relações sociais.
Ao adulto cumpre estar presente, observar, procurar dar sentido às
linguagens da criança e responder adequadamente, pois esse diálogo somente
poderá ocorrer com a materialidade do corpo capaz de expressar desejos, gostos,
aflições. Esta é uma linguagem esquecida, mas que pode ser reavivada no
calor da disposição para com a vulnerabilidade do outro, o bebê, mas também e
para com a fragilidade do adulto. É um ato de disposição colocar-se na perspectiva
de que também nós, adultos, pela condição de humanos, já esquecemos, já
deixamos de saber. Nesse caso, os bebês nos ensinam a reaprender outros
modos de sentir, perceber e agir no mundo.
As crianças pequenas, especialmente os bebês, têm um crescimento
muito rápido. Do ponto de vista orgânico, as crianças, no primeiro ano de vida,
realizam grandes conquistas através do movimento e das linguagens do corpo.
Esse ritmo acelerado de aprendizagens, geralmente comum nas crianças (excetuando
aquelas que apresentam algum transtorno de desenvolvimento, mas
que podem, num ritmo mais lento, ou de modo diferenciado, também aprenderem),
apresenta diferenças que podem ser pessoais, individuais, ou aquelas
definidas como sociais e culturais.
No cotidiano da creche existe uma riqueza de ações que não são
validadas como aprendizagens culturais. O bebê é muito ágil e inventivo; é pode-
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Sandra Regina S. Richter – Maria Carmen S. Barbosa
roso em sua capacidade básica de se auto-organizar, autogerir, auto-administrar,
escolher e tomar decisões para empreender ações e alcançar êxito nos
resultados. A ação autônoma, escolhida e realizada pela criança, enquanto capacidade
de movimentar-se, disposição para iniciativas nas suas relações com
outros, interesse pelo mundo e prazer lúdico de surpreender-se com a
imprevisibilidade dos acontecimentos gerados pelo movimento, é uma necessidade
fundamental do humano desde seu nascimento (TARDOS; SZANTO, 2004).
Esse poder de busca – essa “autonomia” – emerge a partir “de um laboratório
submergido e silencioso de tentativas, provas, experimentos para comunicar,
organizar intercâmbios e interações” (MALAGUZZI, 2004, p. 16) que não é reconhecido
e valorizado nos currículos para crianças pequenas. Pelo contrário,
elas são insistentemente desencorajadas a iniciarem e organizarem outro percurso,
a ir além do previsto pelo adulto.
Concepções de currículo em disputa
A problematização sobre as concepções de currículo vem sendo feita
em nossa sociedade desde a década de 1950. As propostas curriculares, que
durante muitos anos pareciam dar conta das necessidades das escolas em seu
objetivo de formação dos alunos, passam a ser problematizadas a partir de duas
questões:
a) a expansão da escola pública e sua obrigatoriedade para todas as
crianças, em suas diversidades e desigualdades, em caráter global, e
b) as transformações, cada vez mais rápidas da sociedade moderna,
que desestabilizaram os objetivos propostos ao sistema educacional.
As primeiras críticas ao currículo emergem nas décadas de 1960 e1970
inicialmente através das teorias críticas, de orientação neomarxista, em uma
análise da educação e da escola a partir da reprodução das estruturas de classe
da sociedade capitalista e, posteriormente, através da perspectiva pós-estruturalista
que retoma e reformula algumas dessas análises para enfatizar o currí-
culo como prática cultural e como prática de significação (SILVA, 2006).
Nos estudos curriculares contemporâneos, o pensamento de
Stenhouse (1991) e de Goodson (2008) contribuem para pensar o currículo na
perspectiva do encontro entre adultos e crianças no espaço de formação coletiva
da creche. Para Stenhouse (1991), um modelo curricular precisa estar
baseado em processos, isto é, no desenvolvimento de “estratégias de ensino”
que não podem ser previamente determinadas, pois terão que ser elaboradas
pelos professores a partir da reflexão da prática obtida no encontro com as
crianças. Um currículo expressa uma concepção do que é conhecimento e uma
concepção do processo educacional enquanto espaço de intercâmbio vital e
cultural, de pesquisa e também de aperfeiçoamento dos professores. Nessa
concepção, o professor assume na prática profissional a postura de pesquisa-
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Disponível em:
Os bebês interrogam o currículo: as múltiplas linguagens na creche
dor, e não de especialista em programar tecnicamente aquilo que pretende ensinar.
O processo de aprendizagem torna-se colaborativo porque o professor não
pode aprender mediante a pesquisa sem fazer com que os alunos também
aprendam.
Nesse modelo, a autonomia profissional é a base da qualidade
educativa. Para tanto, exige um trabalho em colaboração – participativo de uma
comunidade profissional – e supõe negociação de procedimentos para ampliar
a compreensão, avaliar e desenvolver propostas. A indagação torna-se o instrumento
principal da ação docente (STENHOUSE, 1991, p. 243). Para Stenhouse,
currículo e desenvolvimento docente caminham juntos porque em qualquer matéria,
se nossa preocupação é educativa e se queremos distingui-la da mera
instrução, algo que devemos rechaçar é a pré-especificação de resultados.
Goodson (2008) compartilha a crítica aos parâmetros de prescrição,
gerenciamento e controle curricular com foco na eficiência e eficácia ao reivindicar
a centralidade do envolvimento entre alunos e professores. Para tanto, propõe
a mudança de um currículo como prescrição para um currículo como narra-
ção, de uma aprendizagem cognitiva prescrita para uma aprendizagem narrativa
de gerenciamento da vida.
Para Goodson (2008, p. 152), o sentido curricular encontra-se no aprendizado
narrativo que ocorre durante a formulação e a manutenção contínua de
uma história de vida. É o aprendizado que demanda modalidades diferentes de
planejamento e de pesquisa para a compreensão dos processos de aprender
que passam a relacionar-se com as necessidades e os interesses dos envolvidos
no processo. Em síntese, para o autor, localizar o aprendizado na constru-
ção de narrativas de vida é respeitar sua contextualização e sua história, dando
sentido aos percursos individuais e estabelecendo significados sociais no espa-
ço coletivo e institucional.
Pensar um currículo alicerçado em narrativas abre a perspectiva de
um docente que compreenda tanto o valor educativo do conhecimento, enquanto
processo cultural colaborativo e investigativo, quanto a relevância de uma
subjetividade em processo dinâmico de constituição de um percurso de vida.
Porém, as discussões acerca do pensar – propor e criticar – o currículo ainda
não chegaram aos estabelecimentos que cuidam e educam os bebês. As instituições
que atendem crianças com menos de três anos recentemente se caracterizaram
como escolares. Mas, pela demanda legal de sua inserção no sistema
educacional como parte da Educação Básica, ou pela novidade de pensar a
educação com bebês, as incorporações de tradições da escolarização no atendimento
às crianças pequenas parece ser o único ponto de partida para sustentar
propostas pedagógicas na creche.
Em nosso país (BRASIL, 2009), podemos encontrar basicamente três
modalidades curriculares na especificidade da creche:
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Disponível em:
Sandra Regina S. Richter – Maria Carmen S. Barbosa
a) listagem de ações educativas espelhadas no Ensino Fundamental,
sustentadas na fragmentação das áreas do conhecimento;
b) ações de “vigilância” ou “aceleração” do desenvolvimento infantil
com base nas etapas evolutivas;
c) ações voltadas prioritariamente para o atendimento às necessidades
básicas das crianças.
Essas três modalidades curriculares apontam para pedagogias
adultocêntricas, higienistas e “escolarizadoras” nas quais não há lugar para o
reconhecimento dos bebês e das crianças pequenas como seres linguageiros,
ativos e interativos. Esses currículos não os consideram em suas primeiras
aprendizagens de convivência “no e com o mundo”. São propostas que têm
como característica a prescrição advinda de diferentes discursos: da psicologia,
da medicina ou enfermagem, do senso comum.
As perspectivas apontadas por Stenhouse e Goodson emergem como
possibilidade produtiva para pensar um currículo para bebês em suas interações
com o mundo ao priorizarem a função docente como envolvimento colaborativo e
a narratividade como processo de interlocução para a construção de histórias
de vida compartilhadas, isto é, que afetam tanto a subjetividade do adulto quanto
do bebê. Este caminho é uma possibilidade interessante, pois a análise sobre
os currículos prescritivos apontam para a inviabilidade dos mesmos em uma
sociedade líquida, descrita por Bauman (2001). Se currículos prescritivos,
universalizantes e lineares podiam ser viáveis numa sociedade moderna, isto é,
não inclusiva, com valores sólidos, eles se tornam impossíveis na contemporaneidade.
Trata-se, enfim, de aprender a pensar que é possível pensar a educa-
ção como acompanhamento, hospitalidade e acolhimento do outro em sua radical
alteridade (MÈLICH; BÁRCENA, 2000). Confirmando as palavras de Arendt
(2004) que a especificidade da educação é a natalidade, isto é, o fato de que no
mundo hajam nascido humanos. Aqui, o humano não se fabrica, nasce; não é
execução de um plano predeterminado, mas o enigma de um começar-se.
Os bebês e as crianças pequenas, em sua condição vital de serem
simultaneamente dependentes dos cuidados do adulto e independentes em seus
processos interativos no e com o mundo, rompem com a tradição de conceber
e realizar o currículo como prescrição de objetivos e “conteúdos” a serem aprendidos.
Um estabelecimento educacional para crianças pequenas exige pensar e
praticar ações no cotidiano diferentes do modelo escolar organizado em “aulas”
e baseado na “transmissão de conteúdos”. Os bebês, porque não podem ainda
deslocar-se com autonomia, não falam a “nossa língua”, não permanecem imó-
veis e quietos para ouvirem lições, interrogam a escola e o currículo, exigindo a
abertura a outras possibilidades de planejar, organizar e avaliar o cotidiano da
creche.
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Disponível em:
Os bebês interrogam o currículo: as múltiplas linguagens na creche
Para explorar tal abertura, propomos substituir a concepção curricular
prescritiva do que os adultos devem ensinar e do que os bebês e as crianças
pequenas devem aprender para a concepção interativa de um currículo pautado
nas narrativas que ambos podem estabelecer no cotidiano da creche a partir do
vínculo das linguagens com a vida. A Educação Infantil, em sua especificidade
de primeira etapa da Educação Básica, exige ser pensada na perspectiva da
complementaridade e da continuidade. Os primeiros anos de escolarização são
momentos de intensas aprendizagens para as crianças. Elas estão chegando
ao mundo, construindo relações de pertencimento, aprendendo a compreender
seu corpo e suas ações, suas interações, gradualmente se inserindo com e na
complexidade de sua(s) cultura(s) e corporalizando-a(s).
Linguagens, narratividades e currículos
As crianças pequenas solicitam aos educadores uma pedagogia sustentada
nas relações, nas interações e em práticas educativas intencionalmente
voltadas para suas experiências lúdicas e seus processos de aprendizagem
no espaço coletivo, diferente de uma intencionalidade pedagógica voltada para
resultados escolares individualizados. Aqui, a função docente é co-produtora de
currículo e se efetiva na construção de um espaço educacional que favoreça,
através da interlocução com as crianças e as famílias, experiências provocativas
nas diferentes linguagens enraizadas nas práticas sociais e culturais de cada
comunidade.
As características dos bebês exigem que o dia a dia seja muito bem
planejado, pois há um grande dinamismo e diversidade no grupo. Enquanto duas
crianças dormem, uma quer comer, outra brinca ou lê seus livros-brinquedos
enquanto outro bebê precisa ser trocado. Toda essa diversidade, numa situação
de dependência, exige atenção permanente à segurança das crianças através
de um número adequado de adultos para efetivamente dar conta das singularidades
das crianças. A criação de espaços pedagógicos, de materiais e a construção
de ações educativas que desafiem e contribuam para o desenvolvimento
das crianças exigem preparo e disponibilidade das professoras.
Os bebês e as crianças pequenas estão construindo suas primeiras
aprendizagens e, em todas as situações aprendem: quando conversamos com
eles e nos respondem com balbucios, quando trocamos suas fraldas eles nos
auxiliam esticando as pernas. Todas as vivências são educadoras nessa faixa
etária. A criança nasce inscrita em um código natural e sociocultural. Na interação
com o outro, nas inúmeras possibilidades que o outro lhe aponta, ela imprime
as marcas do humano e constrói sentidos nas linguagens. Sentidos intimamente
vinculados ao ato de brincar, criar, linguajar.¹
A experiência lúdica de brincar inaugura o humano por configurar a
primeira referência de compreensão individual e social que o bebê retém das
interações corporais com a mãe, o pai, irmão ou outro adulto por ela responsá-
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Disponível em:
Sandra Regina S. Richter – Maria Carmen S. Barbosa
vel, numa dinâmica de aceitação e confiança mútua que emerge na intimidade
do brincar com o corpo. As primeiras brincadeiras do bebê estão relacionadas
tanto ao vínculo entre seu corpo e o corpo de quem o cuida quanto à confiança
como fator imprescindível relacionado aos primeiros cuidados e à sobrevivência
do bebê.
As primeiras noções sobre o mundo se constituem no encontro e nas
interações com adultos e outras crianças, marcados pelas relações de emoção
e afeto e pelas oportunidades que as práticas culturais e as linguagens simbó-
licas daquela sociedade sugerem. Nessa perspectiva, o viver não pode ser previamente
determinado, pois a criança não sente e não pensa como os adultos.
Todas têm que aprender a falar, a cantar, a desenhar, a modelar, a dramatizar, a
dançar, ou seja, têm que aprender a narrar o vivido e o que pode ser vivido para
situar-se na convivência coletiva.
Para Bruner (2001, p. 95),
parece que construímos histórias do chamado mundo
real de forma bastante semelhante como construímos
histórias fictícias: as mesmas regras de formação, as
mesmas estruturas narrativas. Simplesmente não sabemos,
e nunca saberemos, se aprendemos sobre a
narrativa a partir da vida ou sobre a vida a partir da narrativa:
provavelmente ambos.
Implica, porém, compreender que o notável não é tanto o “conteúdo
dessas histórias que nos prendem, mas seu artifício narrativo” (p. 44).
Configuramo-nos na e pela narrativa a partir do modo como concebemos e assumimos
a nós mesmos nos personagens, nas opções, nas atitudes, porque nos
encontramos lançados, desde o nascimento, à abertura das linguagens que nos
permitem compartilhar sentidos e participar do mesmo mundo. Assim, cada um
de nós configura os acontecimentos dispersos da sua vida tecendo uma interpretação
pessoal. Nessa perspectiva, a vida humana não se circunscreve nos
limites do biológico: torna-se humana em sua abertura às múltiplas linguagens.
Aqui, o importante a reter é que, por não “vir naturalmente”, temos que
aprender o pensamento narrativo assim como o pensamento lógico-matemático.
Para que as narrativas tornem-se produção de significado “é preciso trabalho
de nossa parte – precisamos lê-la, produzi-la, analisá-la, entender seus mecanismos,
sentir seus usos, discuti-la” (Bruner, 2001, p. 44-45). É porque as narrativas
dizem respeito ao modo como experimentamos e interpretamos o mundo,
como estruturamos os relatos de nossas experiências e de nossas crenças
mais estimadas, que por elas nos projetamos e nos reconhecemos e, assim,
podemos nos compreender e configurar modos de nos constituirmos com outros
na convivência.
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Disponível em:
Os bebês interrogam o currículo: as múltiplas linguagens na creche
Também significa compreender que é através do corpo performativo
que as diferentes linguagens emergem das brincadeiras que as crianças experimentam
e interpretam a convivência. A prática social das brincadeiras exige o
encontro das linguagens. São as culturas da infância sendo produzidas pelas
crianças, em interação com os adultos, que delas participam e são ativadas
pelos processos vitais de interações e transformações linguageiras. Nesse
momento, seus atos de linguagem são potentes e podem dar a ver as complexas
relações sociais e culturais que sempre – desde o nascimento – estabeleceram
com o entorno.
As crianças, em suas culturas infantis, recompõem a cultura material
e simbólica de uma sociedade. Elas fazem sua releitura do mundo: lêem o
mundo adicionando novos elementos geracionais, recriando-o e reinventando-o.
O espaço privilegiado para a interpretação e produção da cultura infantil são as
brincadeiras, que ocorrem no convívio e nas interações entre pares, meninos e
meninas, de idade aproximada e na vivência de situações – reais e imaginárias
– que proporcionam o encontro entre as culturas adultas – familiares, midiáticas,
políticas, étnicas, de gênero, de religião – e as novas culturas infantis. No
encontro entre gerações e também entre os participantes de uma mesma gera-
ção, a necessidade de brincar, de repetir aquilo que nos parece a mesma brincadeira
todo o dia, é um grande esforço de inventar o tempo, a memória e a
história.
Resgatando as interrogações dos bebês
Para resistir à tendência de fazer da Educação Infantil uma escola
“elementar” facilitada ou simplificada e investir na proposição de outro modo de
pensar e organizar o cotidiano da creche, propomos refletir sobre algumas das
interrogações que os bebês fazem à educação. A expectativa é destacar o currículo
da creche como um lugar e um tempo que tenha como foco não apenas a
presença e a participação da criança pequena, mas também a opção pedagógica
de ofertar uma experiência de infância rica, diversificada, complexificada pela
intencionalidade de favorecer experiências lúdicas com e nas múltiplas linguagens,
favorecendo a construção de narrativas que possam oferecer sentido à
vida e às aprendizagens. Uma infância na qual a qualidade da atenção às crian-
ças de zero a três anos seja discutida e socialmente partilhada, ou seja, um
estabelecimento aberto para a discussão com a família e a sociedade. Sobre
qual infância e formação queremos oferecer às crianças.
Os bebês, em seu humano poder de interagir, ou seja, em sua
integralidade – multidimensional e polissensorial – negam o “ofício de aluno” e
reivindicam ações educativas participativas voltadas para a interseção do lúdico
com o cognitivo nas diferentes linguagens. A conciliação entre imaginação e
raciocínio, entre corpo e pensamento, movimento e mundo, exige planejar e
promover situações e experiências que possam ser vividas por um corpo que
pensa. Supõe considerar na ação pedagógica da creche a relevância de favore-
94 Educação, Santa Maria, v. 35, n. 1, p. 85-96, jan./abr. 2010
Disponível em:
Sandra Regina S. Richter – Maria Carmen S. Barbosa
cer processos de aprender a operar corporalmente linguagens e narrativas a
partir das brincadeiras e das repetições lúdicas. Aqui, o divertimento, a sensibilidade
e a alegria, o encanto do bebê pelo encontro com sons, cores, sabores,
texturas, odores, toques, olhares, tornam-se fundamentais porque são uma necessidade
cognitiva: um faro para a inteligibilidade das coisas e seu sentido
para a existência.
Assim, as funções específicas da creche, do ponto de vista do conhecimento
e da aprendizagem, são favorecer experiências que permitam aos bebês
e às crianças pequenas a imersão, cada vez mais complexificadora, em
sua sociedade através das práticas sociais de sua cultura, das linguagens que
essa cultura produziu, e produz, para interpretar, configurar e compartilhar sensações
e sentidos que significam o estar junto no mundo, construindo narrativas
em comum.
Trata-se de um radical desafio à educação de zero a três anos pois
exige compreender o currículo não como um plano prévio de ensinar a vida mas
como abertura à experiência de viver junto – bebês, crianças pequenas e adultos
professores – as situações contextualizadas em narratividades. A dificuldade
está em mudarmos a nossa concepção de currículo como “fabricação” do
humano (MÈLICH; BÁRCENA, 2000) para currículo como criação, ação e narra-
ção do humano já que diz respeito ao agir e portanto, ao risco e ao arriscar-se
em linguagens. Para Arendt (2004), agir é como um segundo nascimento, pois
mantém estreita relação com a condição humana da natalidade. Não há aqui
utilidade mas pluralidade que necessita ser narrada. Implica priorizar a atitude
de respeito à condição humana de buscar sentidos para o viver junto. Trata-se
de um currículo comprometido com escolhas – prudentes mas também apaixonadas
– pelo que efetivamente importa para o significado da vida, para aquilo
que torna a vida digna de ser vivida na esfera pública e planetária.
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